Silvana Rea1
Na medida em que te amo, e em que tu me amas, eu
me reencontro em ti, que pensas em mim, e me reconquisto
depois de ter-me entregue a ti, que me sustentas.
Marsílio Ficino
As dores do verdadeiro amor residem no cerne de nossa
existência; tomam conta de nosso ponto mais vulnerável, fincam
raízes mais fundas que as de qualquer outra dor e se ramificam
para todas as partes de nossos corpos e nossas vidas.
Orhan Pamuk
A cena de abertura invade a tela abruptamente; o filme começa sem aviso, o espectador leva um susto. Um grupo de bombeiros arromba a porta de um apartamento e lá encontra o corpo de uma mulher. Só então surge o letreiro Amor, e em seguida, os créditos.
Trata-se de um filme que tem amor por nome e que começa com a morte. De súbito, traumática e concreta: a invasão do apartamento fechado, o odor que os leva a cobrir o rosto, a náusea, a decomposição do corpo; ainda que um corpo bem cuidado, bem vestido e adornado com flores. Um corpo investido de amor.
Falo aqui da obra do diretor austríaco Michael Haneke, cuja filmografia trata da violência em suas mais diversas manifestações. São dele A professora de piano (2001), Caché (2005), A fita branca (2009), e um filme chamado Amor (2012) que, aparentemente, destoaria de sua poética. Mas não…
Palma de Ouro em Cannes e Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, Amor (Haneke, 2012) tem total consonância com suas preocupações, que além de cineasta, possui formação em filosofia. Sua proposta é a discussão das questões mais profundas do ser humano; aquelas que muitos gostariam de deixar sob o tapete.
Portanto, não se trata exatamente de um filme de amor; ele propõe uma reflexão sobre o amor. Existe amor puro? Há violência no amor? Há apenas um tipo de amor? Até onde se vai por amor?
Vamos começar pela abertura: o filme começa pelo fim e se desenvolve em um longo flashback. Assim, já sabemos de antemão que não há a possibilidade de um final diferente. No filme e na vida, posto que todos nós teremos a morte como fim. E mais, a morte, como é sempre negada, nos pega de surpresa e é violenta. Na sequência seguinte conhecemos Anne e Georges. Haneke não mostra o início do amor entre eles. Apresenta o casal já idoso unido por um longevo e bem-sucedido casamento. A escolha por dois emblemáticos atores franceses que fazem parte da memória de uma geração de cinéfilos, inclui o espectador em uma rede afetiva.
Ficamos felizes e nos sentimos em casa ao ver Jean-Louis Trintignant de Um homem, uma mulher (1966), de Claude Lelouch2, e Emmanuelle Riva de Hiroshima meu amor (1959), obra prima de Alain Resnais3. Dois filmes clássicos sobre o amor, suas possibilidades e impossibilidades.
Conhecemos Georges e Anne à distância. Eles vão assistir a um concerto e mal os percebemos, pois a câmera fixa no ponto de vista do palco nos mostra as pessoas chegando à plateia e se acomodando em seus lugares. Não sabemos quem são, mas o diretor oferece uma pista nesta charada para aqueles que reconhecem Trintignant e Riva na multidão. O concerto tem início e nós, enquanto espectadores do filme e não do concerto, ouvimos a música sem assistir à orquestra.
Haneke de saída nos avisa que não compartilharemos o confortável olho onipresente e onisciente do cinema mainstream. Sim, o diretor cria artifícios que quebram ilusão da edição cinematográfica e nos deixam como na vida…, de fora, pois muitas vezes a câmera está fixa em um cômodo enquanto a ação se desenrola em outro. Não temos acesso a tudo, nem tudo entendemos.
Na saída do espetáculo percebemos que se trata de um casal elegante e culturalmente sofisticado. Musicistas, ela é professora de piano (novamente). Estavam assistindo o concerto de seu ex-aluno, papel interpretado pelo pianista francês Alexandre Tharaud, especialista em peças de Schubert, como no filme. O som do concerto acompanha o casal nos cumprimentos na saída do teatro, no ônibus em direção à casa.
De volta ao apartamento, percebem que ele foi violado e esta ruptura traumática inicia o diálogo entre eles. Não foram exatamente assaltados, nada foi roubado, há um clima de hesitação quanto a reconhecer violência deste ato. Seria vandalismo? Do apartamento, nada falta.
No dia seguinte eles se perguntam sobre o que fazer: alguns vizinhos relataram invasões, vamos mudar o trinco, chamar um marceneiro?
Aqui, a primeira indagação de Haneke: se a vida, como a música, é uma questão de tempo, quanto tempo dura o amor? Uma vida inteira, até a morte? Por outro lado, a vida submete-se a um assalto invisível, mal notado, que lentamente vai roubando a memória, o vigor físico, até que a morte se impõe. Enfim, o tempo é o limite da nossa vida.
Então, Haneke, nos prepara para o que virá. Em seguida ele vai introduzir o que desenvolverá nas próximas horas: o anacronismo temporal da vulnerabilidade, da experiência dos primeiros afetos, do primeiro amor, aquele dirigido à mãe na situação primordial de desamparo e de dependência do outro (Freud, 1926/2014).
Durante a conversa Anne tem um lapso. Um episódio de ausência que dura os exatos quatro minutos nos quais assistimos George perceber que ela não responde, colocar uma toalha molhada em seu rosto, chamá-la insistentemente, dirigir-se ao quarto para se vestir e levá-la ao hospital. A sequência angustiante é acompanhada do som da água que corre solta pela torneira que ele deixa aberta, como o tempo que escorre na areia de uma ampulheta, em contraste com a paralização no tempo do lapso de Anne. Para Georges, um tempo sem fim do horror, do medo.
Sabemos que algo grave aconteceu porque na sequência seguinte Haneke nos mostra o apartamento escuro e com todos os cômodos vazios.
A partir daí, fica mais evidente que a proposta que ele faz ao espectador é a de não se contentar a ocupar este lugar relativamente passivo, mas convocá-lo a entrar no filme como experiência, porquanto não se trata apenas de contar uma história com uma narrativa conduzida linearmente. Aqui somos levados à mesma experiência emocional pela qual os protagonistas passam, vivendo com eles, mas desejando estar de fora porque é muito doloroso. Não é por acaso que muitas pessoas não conseguem assistir o filme até o final.
Durante a hospitalização de Anne, Georges recebe a visita da filha, Eva, também musicista. Papel de Isabelle Huppert que já protagonizara em A professora de piano (2001) do mesmo diretor. Georges conta que Anne está com medo e ele angustiado: “já passamos por muita coisa, sua mãe e eu, mas isso é novo”. Eva, para se tranquilizar e para tranquilizar o pai, lembra da segurança que sentia quando era criança e os escutava fazendo amor, segurança da certeza do amor que sentiam um pelo outro e que ficariam juntos para sempre. O amor garante a segurança de estar no mundo? O amor faz ficar juntos para sempre? O pai e mãe, as duas árvores do jardim de cada um (Chasseguet-Smirgel, 1988), são sustentadas pelo amor. O chão é firme quando se sente ser fruto do amor entre duas pessoas.
Mas aqui há um confronto entre possibilidades semânticas diante do que se chama amor. O pai pergunta como está o casamento da filha, que friamente conta dos diversos casos extraconjugais de seu companheiro, particularmente o último, com uma musicista que por ele se apaixonou, chegando a tentar o suicídio. Após um breve silêncio, Georges pergunta se Eva ama o marido. E ela responde:
“Sim. Eu acho”.
Na pergunta de Georges continua a indagação de Haneke: quantas possibilidade de amar existem? Podemos chamar de amor a fusão pas- sional, a idealização do outro que leva a inoportuna amante à tentativa de suicídio? Ou o movimento narcísico que induz o marido de Eva à uma coleção de relações sem discriminação? E o amor de Eva por ele, que tipo de amor é? Frio? Frívolo? Conveniente? Que tipo de amor seria esse, que quando perguntado apresenta-se com: “Sim. Eu acho”?
Notas
↑1 | Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. |
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↑2 | Jean-Louis e Anne se conhecem em visita a seus filhos no colégio interno. Viúvos recentes, eles iniciam um relacionamento, mas a memória dos amores perdidos é uma presença entre eles. |
↑3 | Uma jovem atriz francesa passa a noite com seu amante japonês em Hiroshima, onde ela está trabalhando em um filme sobre a paz. Ele a faz lembrar do seu primeiro amor, um soldado alemão da Segunda Guerra Mundial, estabelecendo um jogo de memória e dor. |